Arquivo do blogue

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

O Carlos visto por mim


Para acompanhar este artigo sobre o Carlos, sugiro a leitura dos seguintes artigos:

Não me lembro bem que horas eram, mas sei que foi no dia 1 de Dezembro de 1949, à noite pois tanto o Ica como eu estávamos a dormir, quando o nosso pai Artur, nos acordou para anunciar com muita satisfação o nascimento do novo irmão.  Tinha eu nessa altura 5 anos feitos e o meu irmão Ica (Henrique) 8.

Perguntei como se chamava, Carlos disse o meu pai que nos deixou voltar a dormir. Vivíamos nessa altura numa casa alugada na actual rua Marien N’Gouabi que tinha a particularidade de ter uma enorme varanda que partilhávamos com os nossos vizinhos Osório e Isilda Flamengo, os pais do Fananeca que viria a ser grande amigo do Carlos. Isilda era filha do Mario Lima Whanon com quem o Artur teve o “prazer" de partilhar a estadia nos cárceres da PIDE em Caxias.  
Da varanda da casa podíamos ver do outro lado da rua, um descampado com um enorme poilão. A esquerda desse descampado havia uma casa que devia estar alugada a uma associação de músicos que se reuniam regularmente penso eu aos sábados para tocar musica.  Para nos era uma atracção enorme pois eles conseguiam fazer uma barulheira incrível com trombetas e saxofones. 

Depois do nascimento do Carlos, ficamos em Bissau mais uns meses pois entretanto a nossa avo Agatha tinha morrido em Lisboa em Agosto de 1950.   


Clara, a nossa mãe, que adorava o pai Samuel, quando da morte de Ágata, não quis deixar o pai sozinho e pensou que seria uma boa ideia mandar-me a mim e ao Ica para Lisboa onde o avô Samuel se encarregaria da nossa educação.  O Carlos ficou a viver em Bissau por era pequeno demais e só voltamos a viver juntos depois da morte de Samuel que teve lugar em Junho de 1953. No entanto nas férias do verão de 1951, os nossos pais vieram até Lisboa. Enquanto eu andava na escola primaria ali mesmo ao lado na qual fiz a segunda e terceira classe, o Ica entrou para o Liceu Camões onde foi ate ao 2° ano do liceu (terminou o primeiro ciclo).

Lembro-me particularmente do meu pai trazer  latas de chocolate Cadbury-Mackintosh que tinha quilos de bombons que infelizmente tínhamos que partilhar com a numerosa primalhada que aparecia em casa do meu avô. Em Lisboa vivíamos no 118- 1° na Av. António Augusto Aguiar  em frente ao que é hoje o Corte Inglês. Era um apartamento enorme com um corredor todo à volta e com tantos quartos que alguns estavam sempre fechados. Havia também uma sala dedicada à biblioteca do meu avô na qual se entrava em silencio.   
Nos anos 50 a 53 o terreno do Corte Inglês até ao parque Eduardo VII, era um enorme terreno sem construção alguma, onde íamos brincar e andar de bicicleta.  Foi de resto sentado em cima do muro desse terreno que assisti de longe à saída do funeral de Samuel. 

Depois da morte de Samuel,  em princípios de Outubro 1953,  regressamos a Bissau no navio Ana Mafalda que tinha algumas cabines de passageiros.  A viagem durava sete dias e passamos pela Madeira e por Cabo Verde.  A chegada a Bissau como não havia ainda uma ponte cais, o navio ancorava no meio do rio e os passageiros iam para terra num barco a motor. O Ica tinha entretanto ido para Montreal no Canada onde passou um ano em casa do tio Oles e da tia Sónia. 
 
De regresso a Bissau em 1953, fui para a escola primaria que nessa altura estava mesmo atrás do tribunal e la fiz a quarta classe. 
Aproveito para mostrar aqui algumas fotografias de Bissau nesse tempo. Na avenida principal do cais até ao Palacio do Governador. 
Estatua do Nuno Tristão no extremo oposto da mesma avenida e junto ao Bissau velho:

Monumento  ao Teixeira Pinto vendo-se ao fundo o Esforço da Raça.  A nossa segunda casa em Bissau era a esquerda debaixo das mangueiras. 

Do lado de la do monumento ao esforço da raça, vê-se o edifício da Associação Comercial onde toda a sociedade de Bissau se reunia à tarde para jogar às cartas e socializar. 

O Banco estava aqui:
A Casa Gouveia mais tarde Armazéns do Povo era o edifício à direita da avenida que ia do palacio ate ao cais.

Esta fotografia mostra uma das ruas centrais de Bissau.


Era a rua que tinha a maior parte das lojas de Bissau nomeadamente a Ultramarina, o Pintozinho, a loja do Tawfik Saad e penso também o Salgado e Tomé. Ao principio da rua havia uma livraria (a única de Bissau) onde se vendiam jornais diversos e livros de cowboys. 

Tudo era comprado mediante a assinatura de um vale. No fim do mes o comerciante mandava para nossa casa o total da factura do mes. Uma vez estava a minha mae numa das lojas quando la aparece a Sra. Governadora Arnaldo Schultz. Comprou um serviço de porcelana que mandou encaixotar com muito cuidado. Era para enviar para Santarém. Na altura de pagar disse: "Mandem a conta para o almocharifado”. Belo exemplo de espirito colonialista.
A avenida marginal de Bissau que dava até à fortaleza da Amura e à nova ponte cais:

Numa carta que escrevi ao Ica  em Fevereiro de 1954 queixava-me de não ter ninguém com quem brincar pois o Pipito só queria andar de triciclo. Lembro-me que nessa altura tínhamos uma empregada doméstica, a Vitoria (Toia), que levava o Carlos a passear até à ponte cais do Pidgiguiti. 
Passando um dia em frente do tribunal, tentei explicar ao Carlos que era ali que o nosso pai trabalhava.
As únicas revistas de banda desenhada para jovens que se podiam comprar em Bissau eram o Mundo de Aventuras e o Cavaleiro Andante que apresentavam heróis como o Sitting Bull, o Beau Geste ou o capitão Hadock. Numa das múltiplas historias contadas no Cavaleiro Andante aparecia um herói que se chamava Agapito. Não sei porque razão pensei em atribuir ao Carlos o nome de Agapito, o facto é que ele não conseguia dizer Agapito e dizia em vez Pipito. Ficou-lhe o nome para a vida inteira, pelo menos na Guiné.


Continuamos a viver na mesma casa com o Fananeca ao lado. O Pipito durante esse tempo mostrou-se sempre extremamente irrequieto, passando a vida a aparecer debaixo das cadeiras ou surgindo debaixo da mesa, a tal ponto que usávamos a expressão “lagartixa eléctrica” para nos referirmos a ele.

Entrei para o primeiro ano do liceu, na altura colégio-liceu Honório Barreto, no Outono de 1954. Situado na praça do Império à direita do palácio do governador, era um liceu muito pequeno com um numero muito reduzido de alunos, que mais tarde foi convertido em museu.  Fiz neste edifício o primeiro ciclo.
Durante a minha estadia na Guiné, de Outubro 1953 ao verão de 1962, íamos todos os anos pelos menos na altura do Natal e na Páscoa até Varela, onde ficávamos hospedados no hotel do Sr. Pireza.  Nos primeiros tempos a ida de Bissau para Varela era uma verdadeira expedição que levava quase 8 horas com a travessia de dois rios (e duas jangadas) e com múltiplos percalços no percurso (pontes de madeira sem traves, vacas a passear, jibóias a atravessar a estrada) passando por Mansoa, Bissorã, Barro, Ingoré, Sedengal, São Domingos, Susana e finalmente Varela. A partir de Sao Domingos quando atravessávamos uma ponte de madeira era sempre a pé para reduzir o peso sobre a ponte. 

Tambem se podia chegar a Varela de avião. Havia um campo de aviação em terra batida onde aterrava a avioneta do piloto Pinto. Anos mais tarde ja não era possível aterrar porque havia dezenas de morros de bagabaga de alturas fenomenais.

Em Varela, o Pipito quando não íamos à praia, passava o tempo a jogar ping-pong com os amigos, e a brincar com o chimpanzé do Sr. Pireza que passeava em liberdade pelo restaurante no terraço a pique sobre o mar. 

Lembro-me que o socio do Sr. Pireza ia todas as semanas a Ziguinchor comprar os mantimentos para o Hotel. Leite, iogurtes, bebidas exóticas etc. Havia ao pé do Hotel um campo de ténis onde se organizavam campeonatos com todos os veraneantes. 

No Natal o meu pai ia a Bathurst na Gambia comprar pequenos brinquedos de lata que pendurava numa das arvores ao pé do hotel do Pireza. A miudagem local precipitava-se no dia 25 de Dezembro de manha para receber um brinquedo.
 Ao fim de um certo tempo o meu pai decidiu mandar fazer uma casa que hoje é uma ruína. 

Os três irmãos e a mãe em frente da casa de Varela sentados no Nash por volta de 1956

A diferença de idades entre o Pipito e os irmãos mais velhos (8 anos e 5 anos) levou a que ele fosse sempre tratado pelos irmãos com uma certa condescendência. Aproveitávamos o facto de sermos mais velhos para lhe dar ordens às vezes com atitudes muito despóticas.   Uma vez em Bissau consegui levar o Pipito a tal extremidade de desespero que ele me atirou uma faca de cozinha que veio a voar até se espetar na porta que eu tive tempo de fechar.
 Em Varela os tres irmãos
Em Lisboa no apartamento da rua Augusto Gil, alugado pelos meus pais (Setembro 1961) em preparação da nossa vinda para a universidade, lembro-me de duas historias que levavam o Pipito ao auge da revolta contra o despotismo.  Uma delas fazia alusão ao facto de a certa altura o Pipito ter engordado mais do que seria de esperar. Deveria ter ele 11 ou 12 anos. O meu irmão Ica começava o gozo com um anuncio radiofónico da extracção da lotaria Santa Casa da Misericórdia. O Ica ia dando os números sorteados e eu respondia, 10 contos, 20 contos etc., e o Pipito começava a espumar. O anuncio dos números sorteados continuava até que finalmente saia o primeiro prémio.  Nessa altura o locutor da Santa Casa gritava que nem um possesso “Saiu a Gorda”  e o Pipito entrava em transe pois o Ica e eu começávamos a dançar  à volta dele uivando “A Gorda”, “A Gorda”.

Mais tarde e não sei porque razão se não a de colocar o Pipito em transe, uma nova historia foi inventada. Dizia o Ica num tom muito solene “O general saiu a dar o seu passeio matinal, selem o minhoca” . Nessa altura eu obrigava o Pipito a agachar-se para que o general pudesse montar a cavalo.  O Ica exibia uma chibata fictícia para acelerar o processo e o Pipito perdia totalmente as estribeiras.

Talvez tenha sido por este motivos que o Pipito durante toda a vida deu provas de irritação quando confrontado com o abuso de poder.  Manifestava uma aversão total em relação à arrogância de uns, ao despotismo de outros e à imbecilidade de muitos. Neste ultimo caso reagia contra, com um humor acérrimo herdado do pai o que penso deve ter contribuído para um certo numero de inimizades.

No verão vínhamos quase sempre a Portugal e passávamos as férias em São Martinho do Porto, com toda a primalhada.  No verão de 1958, fomos todos, em dois carros,  até Bruxelas para ver a Exposição Universal.  

Passamos por Madrid e Paris e foi em Paris que pela primeira vez na vida vi um self service. A tal ponto que a bandeja com o almoço estava num plano inclinado e acabou no chão. Foi em Paris que vimos o primeiro filme russo da minha vida “Quando voam as Cegonhas”.

Em 1959 antes de ir para a Universidade  estávamos de férias em São Martinho quando se deu o massacre do cais Pidjiguiti em Bissau quando os estivadores reclamaram um aumento de salário à Casa Gouveia. As noticias apontavam para de 15 a 100 assassinados pela PIDE. Com o tempo os meus pais conseguiram saber o que tinha acontecido mas ficou sempre a incógnita do numero de mortos.  Foi o inicio do descalabro que finalmente levou à prisão do meu pai em 1966.

No verão de 1960 fui de Bissau até São Francisco na California, passando por casa dos meus tios em Montreal no Canada. O visto de entrada nos EUA foi-me concedido em Dakar. Lembro-me de ter perdido um avião em Chicago pois o pessoal da policia das fronteiras de Chicago não conseguia perceber onde se situava a Guiné ou o Senegal. O conceito de Africa era algo de muito remoto para eles. Moral da historia fui interrogado durante varias horas até eles perceberem que eu não era nenhum terrorista. Durante a minha estadia em São Francisco deu-se o incidente do Krutchev nas Nações Unidas. Era a primeira vez que eu via televisão. 

Foi la que comprei o meu primeiro par de blue-jeans uma total novidade em Bissau ou em Lisboa.
Quatro anos mais tarde no verão de 1962 fomos a Marrocos de carro passando por Algeciras, Ceuta, Tetuão e Tanger. 
No período 1961-1967, passei pelo Técnico e pela faculdade de Ciências mas o que mais me divertia era o processo de contestação em vigor. No verão de 1962 voltei à Guiné passar umas férias. Foi nessa altura que tirei a carta de condução. Lembro-me de ter tido que responder a perguntas do estilo “qual o sinal que antecede uma passagem de nível?”. O curioso é que na Guiné não havia uma única passagem de nível pois não havia comboios.

Nesse ano, tinha eu 17 anos, ja depois do começo da guerra de libertação, um belo dia aparece em nossa casa um soldado com uma carta de recomendação de alguém la da terra. O meu pai aproveitou para lhe fazer um certo numero de perguntas. O pobre soldado que era analfabeto não fazia a minima ideia de onde estava. Mostrei-lhe um mapa para tentar explicar a distancia entre o continente e a Guiné. E vieste para ca para fazer o que? Para matar pretos. 

Os dias de luto estudante seguiam-se a outros dias de manifestações e a corridas a fugir da policia de choque.  O Pipito entrou para Agronomia em 1966 e antes só o víamos nas férias em São Martinho.

No verão de 1967, depois de ter sido convocado a apresentar-me no quartel onde me esperava uma carreira de pára-quedista militar na Guiné, desapareci calmamente para o Canada tendo assim deixado Portugal, como país de vida, para sempre.  Em fins de 1973 fomos passar uns dias a Ayamonte (Espanha) onde os meus pais dispunham de uma apartamento emprestado na Isla Canela.  O Carlos, a Isabel e a pequena Pepas lá apareceram. Lembro-me de passeios na praia apesar do frio Natalício.

Mais tarde e ainda como residente no Canada, respondendo a um anuncio da UIT, fiz um pedido para trabalhar na Guiné como perito em radiodifusão. Passei seis meses em Bissau em 1976, em condições de sonho, pois tinha um carro posto à disposição pelas Nações Unidas, vivia em casa do Pipito, tinha um local de trabalho no edifício dos correios onde estava situada a rádio e vivia um período de renascimento da Guiné onde tudo parecia possível.  

Foi um época extraordinária com a Guiné a atravessar um período revolucionário onde tudo ou quase tudo resultava do contributo de cada um. As barreiras sociais caíram, éramos todos camaradas. Assim quando era preciso descarregar um barco apelava-se à presença de voluntários. Nessa altura as lojas pouco ou nada vendiam e quando chegava uma remessa de um bem qualquer, ele desaparecia imediatamente dos Armazéns do Povo. Foi assim que um dia vi alguém sair dos armazéns do povo tendo à cabeça, dezenas de rolos de papel higiénico, ou seja todo o stock do que estava disponível.

No cinema da UDIB e graças a acordos com outros países revolucionários, havia festivais de cinema nomeadamente argelino com a projecção de filmes tais como “Chronique des années de braise” e “Le vent des Aurès”.

A propósito de cinema, o Pipito grande admirador de Charlie Chaplin tinha uma colecção de filmes do Charlot muito completa. Na casa onde ele vivia na Rua Vitorino Costa, assisti a numerosas sessões de projecção de filmes do Charlot com o projector instalado em cima do muro exterior da casa e com o ecrã na varanda da casa.  Os miúdos que viviam ali ao pé, vinham aos montes assistir às sessões de cinema a tal ponto que começaram a aparecer miúdos que aproveitavam a sessão de cinema para vender mancarra. Lembro-me que o filme mais apreciado pela miudagem era o Charlot Policia que fazia as delicias de todos.

Ao jantar em casa do Pipito tínhamos muitas vezes discussões de natureza politica. Ele nessa altura continuava a ser um marxista-leninista convicto, guiado que era pela necessidade de resolver com iniciativa, trabalho e abnegação os problemas sociais e económicos do país.

Lembro-me nomeadamente de discussões épicas sobre o papel de Mao na China e sobre os resultados a que se tinha chegado neste país.  As vezes eu tinha a audácia de mencionar os “ilustres feitos” do camarada “Enver Hodja” da Albânia revolucionaria mas o Pipito não admitia que se pudesse por em causa  a utopia na qual ele acreditava. Eu tentava proclamar que o marxismo-leninismo era obsoleto,  e o Carlos afirmava que eu era um adversário e inimigo do proletariado e da revolução.  

Penso que mais tarde perdeu as ilusões revolucionárias sem no entanto perder o fundamental, ou seja a necessidade de lutar para uma sociedade justa, sem prepotências, sem abusos, sem uma dominação financeira.  Acreditava no esforço próprio, na liberdade, na necessidade de evoluir experimentando e na disciplina individual e colectiva. Era um radical determinado mas praticava uma radicalidade sem prepotência. 

Henrique, Elisabeth, Artur, Isabel, Carlos e Clara em Paris

Anos mais tarde, ainda eu estava no Canada, penso que devia ter sido em 1980, voltei no Natal à Guiné  e fomos todos com os meus pais acampar em Varela. O Pipito levou o material de campismo, os mantimentos, o frigorifico e o gerador eléctrico pois em Varela já não havia hotel e luz eléctrica muito menos.  Passámos um fim do ano formidável e até houve fogo de artificio.

Em 1981 apareceu uma oportunidade de trabalho nas Nações Unidas em Genebra. Candidatei-me sem muitas esperanças e em 1982 deixei o Canada para sempre. Passei nove anos em Genebra. O Carlos aparecia de vez em quando, pois ia a Genebra tratar de vários assuntos com o Conselho Ecuménico das Igrejas que financiava  as múltiplas iniciativas do Carlos na Guiné.

Quando íamos de férias a Portugal, passávamos uma parte do verão em São Martinho do Porto sempre na mesma casa que pouco a pouco se foi tornando muito pequena, pois as crianças iam crescendo.  A casa tinha sido oferecida aos meus pais pelo meu avô, quando os meus pais se casaram. A barafunda quando lá estávamos todos era gigantesca a tal ponto que depois da morte do nosso pai, em 1983, decidi mandar construir uma casa ao lado da casa dos meus pais.

 Carlos e a nossa mãe no Cruzeiro de São Martinho do Porto

A partir dai a nossa relação sofreu uma distanciação que nunca aceitei. O Carlos por razoes que era difícil explicar era capaz de por um termo a uma relação de um dia para o outro. Ainda durante a vida do nosso pai o Carlos deixou de lhe falar durante uns tempos, muito simplesmente o Carlos não aceitava, nem a brincar, que se pudesse criticar, mesmo a sorrir, o comportamento dele.  Eu cometi o erro de lhe falar da “valise en carton” que ele levava quando ia a Paris. Não gostou da piada e a partir dai nunca mais teve uma conversa aberta comigo. 

Carlos era um guineense incondicional que nunca teve receio de criticar o regime seja ele qual fosse. Publicou em 2012 um artigo sobre Amilcar Cabral que pode ser visto neste blog.  

Carlos com a faca e o queijo na mão

Em 2014, horas antes da morte do Carlos, ainda ele estava em casa da minha mãe, fui vê-lo deitado na cama. Todos sabíamos que a partida do Carlos estava para breve. Falei-lhe nas cassetes dos cursos de direito do nosso pai na escola de Direito de Bissau, que eu tinha descoberto.  No fim perguntei-lhe se precisava de alguma coisa. Sorriu com tristeza e  baixou a cabeça de cansaço ou de dor.  Repousa hoje no cemitério de Bissau na mesma campa que os meus pais e o meu irmão Henrique.


Em Fevereiro de 2024, dez anos depois da morte do Carlos a Associação para o Desenvolvimento  organisa uma homenagem:




Sobre as diferentes peripécias que o Carlos teve que enfrentar  na Guiné vale a pena ler um pequeno texto da autoria da Isabel Levi Ribeiro que conta os dois assaltos que viveram em Bissau.

Os assaltos à nossa casa em Bissau

Historia contada pela Isabel Ribeiro

Bandidos armados de catana e aka, chegaram à janela da sala, onde estávamos em amena cavaqueira com dois amigos. Começaram aos gritos a bater nas grades da janela. Ainda dispararam um tiro quando viram um vulto a fugir, era a nossa filha. Um deles aos pontapés conseguiu arrombar a porta. Sempre aos gritos mandaram-nos deitar no chão de barriga para baixo.

Percorreram a casa toda, e depois voltando à sala, gritaram para nos levantarmos. Com um deles a guiar-nos, levaram-nos até ao nosso quarto. Outro bandido seguia atrás de nós, todos em fila indiana.

Pensámos que nos iam matar.

Chegados ao quarto, enfiaram o pessoal todo na casa de banho. Éramos cinco, uns na banheira, outro na retrete outro deitado no chão. Estávamos com medo que disparassem alguma rajada. Depois de vasculharem o quarto e não encontrarem o que queriam, tiraram-me da casa de banho, para lhes mostrar onde estava o dinheiro. Eu estava maluca, tínhamos as nossas economias escondidas, mas eu só dizia que não tínhamos dinheiro em casa.

Finalmente resolveram ir-se embora. Trancaram-nos no quarto, já tinham cortado os fios do telefone.

Depois de longos minutos, não se ouvia nem pio, começamos a gritar pela janela também com grades... Por causa dos ladroes.  Tchuda, Tchuda. Era o nosso velho guarda. Tinham-no amarrado, mas ele lá se desenrascou e veio abrir-nos as portas.

Deste assalto ficou-nos sempre a duvida, era roubo? Era para assustarem o Carlos, como um aviso? Os assaltantes não falavam crioulo, pareceram-nos anglófonos

Fomos alvo de vários assaltos quando morávamos no Chão de Papel, mas nada tão violento como este.

Mas houve outro, assustador. AÍ, nós percebemos que vinham para matar o Carlos. Uns dias antes apanhámos um papel sujo e amarfanhado, que dizia: vão-te matar. Mas não ligámos importância.

Então quando ouvimos que havia confusão no portão, consegui espreitar pela janela e vi um bando de ninjas (os GOIS Grupo Operacional de Intervenção, força especial armada de que todos tinham medo). Todos fardados, altos e bem armados.

Só tivemos tempo de pensar, se ficarmos matam-nos. Decidimos fugir pelo quintal para casa dos vizinhos. Os bandidos conseguiram entrar, escancararam todas as portas à nossa procura. Entretanto o nosso vizinho que tinha uma arma, deitou uns tirinhos para o ar, e eles puseram-se em fuga.

Para mim, este dia, foi aquele em que soubemos o que era MEDO. Desde o principio que percebemos que o motivo era politico, e o objetivo era matar. O Carlos era um duro critico e opositor do regime. E era um homem com convicções fortes, um alvo a abater portanto.

A policia, sem ser chamada por nós, apareceu logo de seguida, e tudo indicava que sabiam do que se tratava. 

Memoria do Carlos pelo João Galvão dos Reis Borges

O João Galvão antigo colega do Carlos no liceu de Bissau, quando da morte do Carlos escreveu no blogue onde ele conta uma série de eventos que tiveram lugar em Bissau e Varela, uma homenagem que pode ser lida neste blog. 

O episodio com o embaixador de Portugal em Bissau

O Carlos durante toda a vida teve um enorme prazer em “gozar” com aqueles que não estavam à altura da situação ou por burrice ou por evidenciarem sinais de prepotência.  Uma das situaçoes de que me lembro ocorreu no dia 10 de Junho de 2008 quando o então Embaixador de Portugal em Bissau abriu as portas da embaixada para acolher os portugueses residentes em Bissau no dia de Camões. Entre os convidados estava a Cristina filha do Carlos que na altura trabalhava na Guiné. Eis a historia:

Expulsa por não cumprimentar

A ‘retaliação’ do embaixador 

Uma cidadã luso-guineense foi expulsa da embaixada de Portugal na Guiné-Bissau pelo embaixador José Manuel Paes Moreira durante a cerimónia de 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, por não o ter cumprimentado, alegou o diplomata.

A visada enviou uma carta de protesto ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, e outra para o Parlamento português.

Em declarações ao Correio da Manhã, Cristina Silva, a vítima, manifestou-se indignada com a atitude do embaixador. "Fui chamada, por um segurança, para falar com o embaixador. Ele volta-se para mim e diz-me para abandonar a embaixada porque não o cumprimentei. Quando tentei explicar o que se passou, deu-me ordem de expulsão". Cristina, casada com um professor de português que lecciona em Bissau, alega que chegou tarde à cerimónia. "Quando cheguei já tinham terminado os cumprimentos e não vi o embaixador. Isto não é caso para expulsão".

O gabinete de Luís Amado confirmou a recepção da carta e adiantou que a mesma "foi encaminhada para a secretaria-geral do Ministério para averiguar o que se passou". Recorde-se que, em Março último, as autoridades guineenses pediram a Lisboa a substituição do cônsul Eduardo Rafael acusado de "tratamento indigno" a guineenses.

A versão da visada

(Excertos da carta que seguiu para o Ministro de Estado e dos Negocios Estrangeiros de Portugal, Luis Amado, e para o Parlamento português)

(...) No passado dia 10 de Junho, desloquei-me à Embaixada de Portugal, tal como faço todos os anos para celebrar o dia de Portugal. Não sei precisar a hora a que cheguei à Embaixada, mas foi seguramente depois de terem chegado os primeiros convidados, já que o recinto estava mais cheio do que alguma vez eu vira em recepções anteriores. Procurei por entre a multidão a comitiva de recepção da Embaixada e pude aperceber-me da presença do nosso Embaixador, o Sr. José Manuel Pães Moreira que, de costas, se encontrava rodeado por alguns convidados com quem me pareceu estar já a conviver. Para além do Sr. Embaixador, não consegui ver mais ninguém que pudesse fazer parte da comitiva de recepção pelo que conclui que à hora a que tinha chegado, o Sr. Embaixador já não estaria a receber.

Não cheguei sozinha e, ao contrário do meu acompanhante que permaneceu à entrada, dirigi-me a uma mesa para procurar uma bebida. Passados uns cinco minutos, um segurança da Embaixada veio ter comigo, explicando-me que deveria abandonar o local por que não havia cumprimentado o Sr. Embaixador. Perplexa fui levada pelo braço até ao Sr. Embaixador que furioso e aos gritos me disse que deveria abandonar de imediato a Embaixada por não o ter cumprimentado. Ainda bastante surpreendida tentei explicar, ao Sr. Embaixador, que, conforme referi acima, julgara que este já não estaria a receber.

O Sr. Embaixador, ainda aos gritos e diante da multidão de convidados nacionais e estrangeiros explicou-me que esta era a segunda vez o que eu me comportava de idêntica forma, o que me deixou sem palavras.

Pedi que me permitissem avisar o meu acompanhante de que teria de sair, o que me foi recusado tendo um segurança disponibilizado a fazê-lo.

Informo ainda que tive o cuidado de procurar no dia seguinte o nosso Adido da Cooperação, o Sr. Guilherme Zeverino, para explicar-lhe que tanto ele, como os restantes elementos da comitiva me haviam igualmente passado despercebidos mas que em momento algum tive qualquer intenção de os ignorar. O Sr. Adido da Cooperação, explicou-me que a Embaixada recebera cerca de quinhentos convidados e que apenas um (eu) não cumprimentara o Sr. Embaixador. Embora tal afirmação me tenha deixado desconcertada, posso dizer que fui recebida com cortesia pelo senhor Adido que, no entanto, em relação ao comportamento do Sr. Embaixador não foi capaz de proferir uma palavra (...)

Cristina Schwarz

A resposta do Carlos

O Carlos não esteve com meias medidas. Escreveu uma carta aberta ao ilustre embaixador que gerou uma enorme satisfação no seio da comunidade de portugueses que infelizmente tinham de lidar com Sexa. Aqui vai a carta:

Alpedrinha, feito Embaixador

Do alto da sua menoridade, no dia 10 de Junho, o Embaixador de Portugal mostrou a sua Raça.

Ao expulsar de território português uma cidadã portuguesa, minha filha, e pior ainda pelas estapafúrdias razões invocadas, "não ter cumprimentado Sexa" mostrou à evidência a sua pequenez, a completa falta de neurónios e a sua acentuada tendência para o consumo de penaltis do Cartacho…

Da inigualável galeria de personagens de Eça de Queiroz ocorre-me logo a comparação com o subserviente Zagalo, distinto biógrafo do eterno Conde d'Abranhos, mas sou obrigado a reconhecer que afinal este sempre dominava umas letras, tinha um estilo de escrita vigoroso e eloquente e conhecimentos escolares mínimos, o que manifestamente parece não ser o caso do Embaixador. Faz-me lembrar mais o Alpedrinha, desterrado no Cairo a fazer vezes de representante de Portugal. Este ainda poderia ambicionar ser Embaixador, enquanto o de cá tem mais vocação para Embailador.

Garantem-me pessoas amigas que este nosso Alpedrinha de trazer por casa foi, em tempos idos porteiro do Bar Filadélfia ao Cais do Sodré. Sinceramente não o creio. Vejo-o mais a exercer as mesmas funções na Ginginha do Rossio ou no Papa Açorda, porque mais condizentes com a sua figura caricata, o bigode de caranga e com o pé sempre a fugir-lhe para a chinela.

Afinal, Portugal representa-se por pessoas de bem, civilizadas, cultas, como, por exemplo, todos aqueles que vieram participar no Simpósio Internacional de Guiledje e que trouxeram um abraço solidário, mostraram o seu elevado nível de sentimentos, de conhecimento histórico e cultural e que deixaram em todos nós uma  imagem do Portugal moderno e civilizado que muito nos calou no coração.

O Alpedrinha que nos calhou em sorte tem o rei na barriga e um séquito de fieis servidores a quem humilha permanentemente na Embaixada, mas que habituados à canga não tugem nem mugem, acabando até por gostar de a carregar.

Uma coisa ele não sabia e passou a saber. É que há pessoas, simples mortais, com quem se pode brincar a tudo menos com a sua dignidade.

Vamos a isto, então!

Carlos Schwarz (Pepito)

Bissau, 13 de Junho de 2008


Para ir mais longe sobre a vida e obra do Carlos aconselho a leitura do artigo sobre o Carlos na Wikipedia



Sem comentários:

Enviar um comentário

Veuillez laisser votre commentaire et votre mail. Merci