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segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Pepito o Ultimo dos Mohicanos por João Galvão

 


PEPITO, O Último Dos Mohicanos….

(com a devida vénia ao João Galvão) aqui vai o texto extraído do site:


“Às minhas netas Sara e Clara com a esperança de um dia poderem viver tranquilamente na 
terra adiada com que Cabral sonhou”, Carlos Schwarz da Silva, PEPITO, 1949-2014.

À família Schwarz da Silva: D. Clara, Isabel, Cristina (Pepas), Ivan, Catarina, João e Henrique, 
o blog Tatitataia se vos associa com intenção de partilhar a enorme dor causada pelo 
prematuro desaparecimento físico do vosso e também nosso saudoso PEPITO. E, através 
do presente texto, Tatitataia também se empenha em prestar uma singela homenagem 
a este amigo e sui generis Combatente pela Paz e Progresso do Povo, que fez da sua 
Pátria – Guiné-Bissau – o palco, o espaço onde abnegadamente materializou as suas 
convicções. Paz à sua alma!

Na sequência dos dois últimos textos da série “O Homem Novo Forjado Na Luta” aqui 
publicados, este capítulo poderia perfeitamente intitular-se: “O Mais Aguerrido 
dos Moisés”. Aguerrido em todas as arenas que lhe serviram de palco aos seus 
desafios e inumeráveis confrontações de vária ordem.

Para definir PEPITO, não escasseiam adjectivos que reconhecem no seu perfil uma
 frontalidade por vezes controversa, porque também foram múltiplas e controversas 
as situações com as quais se viu confrontado, sobretudo ao longo da sua vida profissional.

Avaliar, ajuizar a personalidade de PEPITO não é e nem será tarefa fácil para Tatitataia; 
e quero acreditar que o não será, mesmo para aqueles que, com alguma pretensa 
objectividade, pretendam formular um juízo sobre essa ‘sui generis’ pessoa, inclusive 
aqueles que o não puderam aquilatar. Todos juntos não saberão esquivar-se ao 
reconhecimento de que o guineense PEPITO em circunstância nenhuma poderá 
ser considerado um vulgar de Linnaeus. 

Tatitataia optou com algum simbolismo da lenda do Último Dos Mohicanos para 
homenagear o guineense Carlos Schwarz da Silva, vulgo PEPITO que, física e 
prematuramente, nos deixou a 18.02.2014. Esse trágico acontecimento ocorreu em Lisboa.

Em meados de Agosto de 2010, o meu amigo Mário Sá Barbosa e, seguramente, amigo 
de muitos mais, fazendo jus à nossa amizade de longa data, prestou-se a 
acompanhar-me ao Aeroporto da Portela aquando do meu regresso a Paris 
após uma curta estada em Lisboa. Uma vez cumpridas as formalidades de qualquer 
check-in, encetámos um informal bate-papo aguardando a chamada para embarque. 
E é nesse espaço de tempo que o telemóvel do Mário desperta. Com o Mário em 
comunicação, não pude aperceber-me de quem estava em linha pois, do pouco 
que falou não pronunciou qualquer nome. Entretanto, confesso ter ficado um quanto 
embaraçado quando me passa o telefone e diz: Fala!

Identificado o meu interlocutor por ter ouvido do outro lado da linha: um franco 
Olá João, aqui o PEPITO, foi o suficiente para que a minha voz esmorecesse, 
esvaziasse de energia e sentisse instalar o conhecido e desagradável nó na garganta! 
E, sob peso dessa enorme emoção, até me pareceu mentalmente ouvir alguém dizer: 
João, tens o PEPITO de volta. É agora ou nunca. Abraça-o. E esse abraço foi confirmado 
pelo e-mail enviado a 17.08.2010, às 01:27… após meu regresso a Paris e assim redigido,

Caríssimo Pepito, “Pepitóvski”

Graças ao Mário Sá Barbosa, consegui, e com enorme satisfação, renovar, melhor, 
reatar os nossos laços de amizade e não só. Fiquei agradavelmente surpreendido pelo 
Mário que, no aeroporto aquando do meu regresso a Paris, me passou para as mãos 
o celular dele sem me dizer quem estava chamando…
É óbvio que o impacto de ouvir-te, depois de mais de vinte anos sem contacto(s), fez 
com que a chamada, “insípida” pelas circunstâncias, acabasse por ficar inacabada pois 
não sabia o que dizer (efeito surpresa)…Daí a razão da minha chamada telefónica de 
há dias!
Creio, entretanto, que perdemos todos a oportunidade de, ao redor de uma mesa 
(jantar ?!), juntos apreciarmos e saborearmos um bom elenco de verdadeiros 
contadores de “passadas”!
Mas que pena! A tua presença seria um valiosíssimo estímulo (diria mesmo, uma 
“provocação”) para o meu “talento” de contador de passada(s)…Ahhh, repito, ahhhh, 
que pena!…

Doravante terás notícias minhas mais assíduas. Saudações à Isabel, mantenhas à 
miudagem e um abração amigo, João

Deixei Bissau em 1985 numa altura em que as relações João-Pepito e Pepito-João
 não respiravam nem transpiravam saúde. Razões? Como descobri-las?  Talvez 
ecorrendo ao que diz a Lei de Coulomb a respeito de cargas portadoras do mesmo 
sinal e tentar estabelecer paralelo com o relacionamento entre temperamentos 
humanos da mesma natureza ou muito semelhantes… Mas é num quadro desses e 
com um Sá Barbosa completamente alheio a esse pormenor que chega por intermédio 
de um bendito telemóvel essa bem-vinda chamada que pôs termo a duas décadas e 
meia de um longo, magoado e difícil silêncio. Ironias do destino?!

Como testemunha a cópia desse e-mail de 17.08.2010, 01:27 e acima transcrito, 
essa chamada acabou por conceder à velha amizade João-Pepito e Pepito-João 
uma merecidíssima oportunidade de se manifestar de novo, esquecendo pequenas, 
médias e grandes querelas, de rejuvenescer e adquirir a pujança e a solidez que 
lhe eram próprias um quarto de século atrás. E depois desse feliz 17.08.2010, os 
e-mails e um sem-número de longas chamadas Skype permitiram ao João Galvão 
Borges, o Galvas, ter o seu Pepitóvskicompletamente reconquistado e ao Pepito o seu 
Jonas mais jovial que nunca. As saudades, porém, essas, ficarão para sempre 
insatisfeitas e, sobretudo, inconsoláveis…

Por tudo isso, amigo Sá Barbosa ficamos-te imensa e eternamente gratos. Obrigado 
Mário!
Isabel e Pepito fazem parte de uma enorme vaga de pessoas singulares e de 
jovens casais guineenses, cabo-verdianos e não só, como Samanta e Moisés 
relatados por Tatitataia na curta série do Homem Novo Forjado Na Luta. Essa vaga 
vinda das bandas do Tejo era constituída por uma plêiade de jovens entusiastas que 
resolveram abdicar da segurança, da tranquilidade e do conforto de uma vida 
europeia para regressar à terra e, como então se dizia: saldar a sua dívida para 
com o povo! 

Entretanto, e bem mais cedo que seria de prever, essa vaga foi perdendo caudal.

E foi perdendo caudal à medida que o Poder, nas mãos dos novos senhores, os 
Melhores Filhos da Nossa Terra deixavam cair a máscara, mostrando arrogante e 
orgulhosamente à Guiné-Bissau e ao Povo Guineense as suas verdadeiras intenções: 
a de se substituírem aos colonizadores que acabavam de deixar o solo pátrio 
guineense. De Bissau fizeram o mais valioso espólio de guerra e das populações 
seus perfeitos vassalos. Interessante constatar a ‘mise en garde’ de A. Cabral 
sobre essa realidade no panfleto «História da Guiné-Bissau e Ilhas de 
Cabo Verde», maioritariamente escrito e revisto por Cabral pouco antes de 
morrer: “….. A libertação nacional não poderá significar a transferência de poder 
dos colonos para uma minoria exploradora nacional…”

E é sob pressão desse aterrador clima político que se dá a ruptura entre o totalitarismo 
instaurado e os quadros técnicos mais conscientes dessa realidade. Uma ruptura que
 levou Samanta e Moisés e os demais da citada vaga a terem de (re)fazer malas com 
alguns poucos haveres e com uma enorme e constrangedora ilusão para uma viagem que 
seria (e foi) definitivamente sem retorno. E impõe-se afirmar que essa ruptura enquadra-se 
numa sequência de outras bem mais graves: a do PAIGC e do seu aparelho de Estado 
com a linha ideológica de Amílcar Cabral. Com efeito o semanário Nô Pintcha, órgão 
oficial do Partido e do Estado deixara de publicar os extractos de Amílcar Cabral. No fundo, 
essa foi apenas mais uma das sucessivas rupturas do PAIGC com o seu fundador. A primeira 
e a mais dramática teve lugar, como todos se lembram, a 20.01.1973, aquando do assassinato
 de A. Cabral em Conakry.

É justo sublinhar e enaltecer a transbordante coragem de todos quantos se recusaram 
deixar a terra dispondo-se a assumir as mais nefastas consequências que poderiam advir 
desse regime que, como mencionado, não tardou a deixar cair a máscara 
mostrando e demonstrando as suas macabras intenções. Entre esses valorosos 
resistentes, Isabel e Pepito são merecedores de citação em primeiro plano. E nesse 
patamar porque, não ficando pela ruptura com o sistema, ele adquire uma outra dimensão 
quando chega à confrontação após uma fase de aberta condenação.
Abandona o aparelho de Estado deixando o Ministério de Desenvolvimento Rural e 
afasta-se também das estruturas do PAIGC onde foi militante e, por muito tempo, membro 
activo da JAAC, Juventude Africana Amílcar Cabral para desbravar novos caminhos por
 seus pés e por sua conta e risco.

Essa provocante irreverência e o crescente sucesso de tudo quanto esteve sob sua 
alçada despoletaram os mais variados e ambíguos sentimentos, fazendo de Pepito uma 
figura extremamente polémica. Amado pelas classes populares e pelos mais desfavorecidos
 da sociedade e muito nomeadamente no seio dos camponeses, seu terreno de predilecção.
 Muito mal-amado por alguns dos mais proeminentes do Poder como também pelos 
muitos parasitas orbitando esse Poder, a exemplo dos conhecidos sarabafais, brilhantes e 
exímios especialistas no exercício do mimetismo, neste caso político. Uma subespécie de 
difícil posicionamento taxonómico por dizer amém a TUDO e a TODOS. E que não se 
esqueça aquele dia de Março de 2001 no qual Pepito e família foram vítimas de uma
 tentativa de assassinato, conduzida por gente com equipamento militar. Houve 
tiroteio na residência familiar…

E para reforçar a credibilidade do parágrafo anterior, trago a vosso conhecimento o 
que me foi permitido presenciar enquanto funcionário do MDR, Ministério do 
Desenvolvimento Rural quando, em 1975 e anos seguintes, era convocado a 
participar nas sessões do Conselho Directivo que se reunia durante todo o dia e 
na última sexta-feira de cada trimestre. Em presença dos directores-gerais e dos
 responsáveis pela elaboração da acta da reunião, os participantes faziam o 
ponto de situação dos problemas enfrentados e do progresso dos respectivos projectos, 
regiões agrícolas, programas, departamentos e outras actividades sob tutela do MDR.

E era nesse espaço, quando Pepito era chamado a pronunciar sobre o (seu) DEPA, 
que se podia avaliar o nível dessa colectiva e dirigida animosidade versus a pessoa 
de Pepito, o que fazia que cada sessão tomasse, em sentido figurado, os contornos 
dos habituais conflitos da Faixa de Gaza. Era verdadeiramente impressionante na medida 
em que essa agressividade em relação a Pepito quase se tornava palavra de ordem
 para todas as sessões do Conselho Directivo, mas com um Pepito inamovível e cada 
vez mais determinado e na defesa da sua posição e dos seus objectivos.

Quando se sabe que o próprio Amílcar Cabral, considerado fundador da nacionalidade
 Bissau-guineense estaria hoje e a coberto da actual Constituição da República 
interdito de se candidatar à Presidência da República por limitações impostas pelas 
suas origens, compreender-se-ão mais facilmente os íngremes e pedregosos
 calvários percorridos por um Pepito de cujas raízes tão bem conhecemos para, 
no contexto sócio-político-económico da GBissau de algumas décadas a esta parte, 
querer e poder dar provas de patriotismo. Esforço seguramente titanesco. Sobre-humano!
Que também se faça saber a recente e não velada resistência da Assembleia 
Nacional em, finalmente, permitir a abertura de um livro para recolha de 
assinaturas de condolências aquando do trágico desaparecimento físico do saudoso
 Pepito que também foi deputado da Nação. Este facto adicional e bem significativo 
demonstra o ainda longo caminho a percorrer para que a GBissau venha a ser 
a Pátria de TODOS os guineenses, independentemente do teor em melanina que
 pigmenta a pele de cada cidadã ou cidadão. E duvidamos seriamente que o 
governo bissau-guineense venha a ter qualquer iniciativa pública de homenagem 
a PEPITO.  

O meu longo relacionamento com Pepito no âmbito do privado como do profissional 
permite-me fazer uma leitura dessa muito carismática figura dotada, entretanto,
 de uma personalidade muitas vezes fracturante. Anunciarei em pequenos parágrafos
 o que a memória me permitiu registar desse amigo pessoal e também da controversa 
pessoa que ele foi. E, ao começar, afirmo que não se sentia muito à-vontade em 
estruturas onde não estivesse posicionado de forma a fazer-se ouvir e tomar 
decisões. O abandono do MDR só pode confirmar esse meu sentimento. Adquire a 
plenitude do seu potencial e da sua capacidade de trabalho e/ou acção quando as 
suas decisões forem ou puderem ser soberanas.É, indubitavelmente, um líder
Dava ordens, conferia e quase de imediato avaliava o cumprimento dessas ordens. 
Sabia rodear-se de elementos da sua inteira confiança que avaliava em função 
da capacidade para cumprir e da prontidão no cumprimento.
Pepito era um trabalhador inveterado, inesgotável. O trabalho era a sua fonte
regeneradora de energia!

Um resoluto adversário ou, mesmo, inimigo do fatalismo. Não se contentava em
 identificar problemas mas sim em implementar soluções mesmo quando se 
batia com armas desiguais. De uma tenacidade à prova de TUDO. Quando se
 diz: Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje, Pepito fazia uma 
leitura radicalmente diferente: não podes deixar para amanhã o que tens de fazer 
hoje. Essa foi a marca PEPITO!

Mesmo muito apreciado ou mal-amado pela forma peculiar como sempre geriu 
os projectos sob sua alçada, importa sublinhar que Pepito soube sempre e com 
muito sucesso levar a sua nau a bom porto. Um facto que, por irrefutável
granjeou-lhe muitos admiradores e, também, obviamente, aguerridos adversários

A sua ligação à terra-mãe e suas gentes foi uma das características 
marcantes de sua idiossincrasia. O convívio profundo que manteve com familiares 
e amigos marcou de forma indelével o seu ser social. Curiosamente, forma-se em 
Portugal nos anos 70 e nos bancos da faculdade por onde passou Amílcar Cabral, 
de quem foi profundo admirador. Extremamente activo no meio académico, forja aí 
a sua têmpera de combatente anticolonialista e antifascista.

De regresso ao País após independência, este abnegado trabalhador afirma-se 
como um dos mais fervorosos defensores e impulsionadores de medidas 
dirigidas ao favorecimento e desenvolvimeno do meio rural como sendo a forma 
mais eficaz de assegurar, a médio e longo prazos, a almejada auto-suficiência 
alimentar. Animado de um espírito combatente e resoluto, este cidadão 
exemplar foi um PATRÍCIO da nova era. Sempre ao lado do seu povo, servindo 
de tribuno das suas mais profundas aspirações. Que as gerações futuras possam 
apropriar-se de um tal legado!!!

Uma distinta conterrânea soube melhor que ninguém homenagear Pepito ao afirmar: 
Há pessoas que fazem da vida um sonho. E quando nos apercebemos da 
existência delas, desaparecem. E tal como o sonho, são fugazes e efémeras.

Nada e Ninguém conseguiu demovê-lo da rota que traçou.

Até Sempre, PEPITO!

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