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sábado, 23 de dezembro de 2023

Chamava-se Maria, filha da Guiné e ama do Artur


Chamava-se Maria

Maria Madalena teria nascido na Guiné a 13/5/1914. Tenho certas duvidas relativamente a esta data pois acontece que a Maria deveria ter vindo para Lisboa ao mesmo tempo que o meu pai Artur que nasceu em 14/10/1912. Segundo rezam as lendas da família a Maria teria vindo para Lisboa em companhia da minha tia Cristina em finais do ano 1925, que corresponde ao ano da morte do meu avô paterno Henrique Augusto Silva. Foi em 1925 que a minha tia Cristina que era a mais velha da família, casada aos 15 anos de idade em 1919 com Augusto Pereira Brandão médico colonial e jà com um filho (Licas) nascido em Bissau, tomou a decisão de ir viver para Lisboa. 

Em Lisboa em casa da minha tia Cristina, Maria ficou encarregada de tomar conta dos dois irmãos da Cristina ou seja o meu pai Artur (que tinha na altura 13 anos), o meu tio Joao (que na altura tinha 15 anos) e do recém nascido (1925) Henrique Pereira Brandao (Licas), primogênito de Cristina e Augusto. A partir desta época, a Maria ficou para sempre como ama de todos os numerosos filhos e filhas (Guto, Painha, Néné, Xoni e Beca) dos meus tios Cristina e Augusto. 

O meu pai teria em principio quatro a cinco anos de menos que a Maria o que me leva a concluir que a Maria tinha em 1925, qualquer coisa como 17 anos de idade.  

A pratica de ter uma rapariga serviçal domestica que ajudava à gestão da família era relativamente corrente nesses tempos e perdurou durante muitos anos. Assim por exemplo nos anos 1953—57, o meu irmão Carlos quando era miúdo em Bissau tinha como “ama” um rapaz de uns quatorze a quinze anos.

Mas porque razão teria a Maria ter sido escolhida para acompanhar a família no seu regresso a Lisboa? Mais uma vez reza a lenda não escrita da família que na realidade a Maria teria sido uma meia irmã do meu pai, que teria nascido em Farim onde o meu avô paterno Henrique Augusto Silva, nascido na Ilha Brava,  se tinha estabelecido como comerciante. Não é de estranhar que tal tenha acontecido pois o meu avô alem dos três filhos oficialmente reconhecidos; a Cristina nascida em 1904, o Joao em 1910, e o Artur (o meu pai), todos nascidos na Ilha Brava, teve também um outro filho José, de mãe desconhecida que foi viver para a Guiné onde faleceu e de quem não se sabe nada.


Todos os filhos legítimos nasceram na Ilha Brava para onde se deslocava a minha avó cada vez que estava grávida, fazendo a viagem Bissau-Ilha Brava de barco que nem sequer podia atracar no cais da Furna que na altura ainda não existia. Na realidade os serviços sanitários na Guiné eram na altura muito pouco desenvolvidos enquanto que na Ilha Brava tanto o clima como os serviços sanitários eram muito melhores.

Na minha família, todos sem exceção e a partir de 1925 até à morte de Maria em 2007, beneficiaram do amor, da gentileza e dos bons tratos da Maria. 

Ela estava sempre presente em todas as actividades de qualquer membro da família. Lembro-me da existência da Maria desde 1950 quando fui viver com o meu avô materno para Lisboa. 

Ele vivia no primeiro andar do 118 da Av. Antonio Augusto Aguiar  em frente a um descampado onde hoje está construído El Corte Inglês. No verão de 1950 os meus pais vieram de Bissau on viviam na altura, para passar uns tempos com a família que se reuniu em peso em casa do meu avô para celebrar a vinda dos meus pais. Lá estavam todos os meus primos e primas e bem entendido a Maria que nos ajudava a abrir e ingurgitar os kilos de bombons de chocolate da marca Quality Street da Mackintosh’s que o meu pai trazia de Bissau.  Sempre a sorrir, sempre bem disposta a Maria era para nós uma ajuda formidável. Era ela que fazia o impossível para esconder às pessoas crescidas todas as asneiras de que éramos capazes. O descampado em frente da minha casa, era o meu terreno de jogos e de aprendizagem de bicicleta. Lá estava a Maria de penso na mão cada vez que eu vinha com uma mazela para casa. 

Com a morte do meu avô em 1953, voltei para a Guiné onde fiquei até concluir o liceu em 1962. Neste período só via a Maria nas férias de verão quando a família se reunia toda em Sao Martinho do Porto.  Alugávamos duas barracas de praia lado a lado e a Maria como pessoa responsável, enquanto íamos passando de crianças a adolescentes, verificava que o farnel para a praia estava pronto, comprava bolos às senhoras que desfilavam na praia com caixas de bolos à cabeça, verificava que tínhamos ganho qualquer coisa na roleta dos suspiros e não nos deixava ir para a agua antes de terem passado pelo menos duas horas depois do fim do almoço. Durante o período da praia, os mais velhos passavam o tempo a jogar tennis ou a jogar as cartas no Hotel Parque, delegando na Maria a responsabilidade de chefiar a manada de crianças. 

Mais tarde quando voltei definitivamente da Guiné, para a universidade em Lisboa, os meus pais alugaram um apartamento no terceiro andar do 37 Rua Augusto Gil onde o meu irmão Henrique e eu vivemos o período universitário. Nessa altura a Maria estava a viver em casa do Licas e lá vinha ela duas vezes por semana até à Augusto Gil, limpar a casa, lavar a roupa em suma fazer o impossível para nos ajudar a viver com uma certa dignidade. 

Sai de Portugal em 1967 e nunca mais voltei a viver permanentemente em Portugal. Lembro-me que no Natal de 1974, quando eu não podia ainda voltar a Portugal, os meus pais decidiram que nos iriamos encontrar em Ayamonte (Isla Canela) local mais perto da fronteira sul de Portugal.  

Alem dos meus pais, e do meu irmão Carlos na altura já casado e com uma filha, estiveram em Ayamonte o Licas e a esposa Manecas e bem entendido a Maria que mais uma vez fazia o impossível para ajudar nomeadamente tratando das duas crianças de tenra idade que eram a Cristina filha do meu irmão Carlos e o meu filho Martin. Lembro-me que apesar de se tratar do sul de Espanha o inverno foi muito rigoroso e a pobre da Maria punha uma manta em cima da outra para aguentar o frio.

Os tempos foram passando e só via a Maria aqui ou ali por ocasião de uma visita a Portugal. Ela ia passando de um membro da família para outro, sempre com o mesmo carinho e bom humor à medida que novas gerações de crianças iam aparecendo. As crianças da minha geração já eram pais e mães e a Maria tratava deles como se fossem seus filhos. 

A certa altura da minha vida, estava eu a viver a Geneva, apareceu a oportunidade de ir visitar os meus primos Helder e Néné que estavam a viver em Bruxelas. 

Lá fomos de carro e esta foi a ultima vez que vi a Maria que estava em casa da Néné. Lembro-me de lhe ter perguntado como o fazia sempre que a via “Kuman de curpo”, “Kurpo sta bom” (tradução: estás  boa?). Se bem que ela nunca tivesse voltado à Guiné, não se tinha esquecido de falar o crioulo da Guiné. Era a brincadeira eterna entre nós.  

Depois do grave acidente de viação que a Néné sofreu em Almada, em 1988, que a deixou muito debilitada, com perda de faculdades motoras e mentais (a Néné acompanhava na ocasião o Helder numa comitiva em visita oficial à Base Naval do Alfeite), a Maria teve um papel crucial no seu acompanhamento e apoio. 

Assim, e cerca de um ano depois, com a morte do Helder (agosto de 1989), tornou-se inseparável da Néné, tratando-a como se fosse sua filha. Viveram assim juntas até à morte da Néné em 2000. 

A Maria, com o apoio do Paulo (filho da Néné) viveu ainda mais uns anos sempre sorridente e penso sempre feliz. Em setembro de 2007 e com quase 100 anos a Maria adormeceu para sempre. Deixa em todos os que tiveram a felicidade de se cruzar com ela uma recordação de calor e de humanidade fora de comum, sendo igualmente um exemplo de vida, uma vida de abnegação, de dedicação e amor ao próximo, e de boa disposição.

João Schwarz


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