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terça-feira, 26 de dezembro de 2023

João Augusto Silva (irmão de Artur) - Vida e Obra


Nascido na Ilha da Brava em 1910 e falecido em Paço de Arcos em 1990, João Augusto Silva foi funcionário da administração colonial na Guiné, em Angola e Moçambique. Desenhador, naturalista, decorador e escritor, foi galardoado em 1936 com o Prémio de Literatura Colonial da Agência Geral das Colónias.

Foi também caçador, tendo depressa abandonado a espingarda em troca da máquina fotográfica, com a qual se dedicou a captar imagens de uma das suas paixões maiores: os animais. Nascido em Cabo Verde, passou parte da infância na Guiné, terra a que regressará entre 1928 e 1936. Em finais dos anos 20, apresentava-se já numa exposição conjunta com o pintor e decorador Tom (Tomás de Melo).

João Augusto Silva, que também assinou «Augusto» ou «João Augusto», destacava-se pela delicadeza do traço com que retratava os animais da selva africana, em forma estilizada, com uma enorme elegância formal. Foi escritor, também. A sua estreia no mundo das letras dá-se em 1936, com África: Da Vida e Amor da Selva, prefaciado por Eduardo Malta. O título da obra como que resumirá o essencial da sua vida de artista português de temática africana, uma vida de amor pela selva.

O interesse pelos animais despertará nele, além da paixão artística, a curiosidade científica. Nessa qualidade, deu à estampa o livro Animais Selvagens: Contribuição para o Estudo da Fauna de Moçambique (1956). Mais tarde, O Comportamento dos Animais Perante o Homem (1963). Administrador do Parque da Gorongosa, será mais tarde Curador do Jardim Zoológico de Lisboa, de que publicou um Guia, em 1977. Sobre a Gorongosa, uma obra preciosa – Gorongoza: Experiências de um Caçador de Imagens (1964). Um ano depois, Selva Maravilhosa: Histórias de Homens e Bichos, narrativa ficcional baseada em recolhas da tradição oral moçambicana. Amante da Natureza, membro do Instituto de Investigação Científica de Moçambique, João Augusto Silva foi artista português e africano, cientista e escritor. Homem plurifacetado, culto, raro. A sua obra bem merece ser estudada e conhecida.

Em 2013 é publicado “Atlântida, romance de D. Salomé e outras histórias, histórias e contos da Guiné, Angola e Moçambique”, por João Augusto da Silva, Edições Vieira da Silva.

Estranhamente, a obra não vem contextualizada e bem merecia um prólogo que enquadrasse as actividades profissionais e culturais deste administrador colonial plurifacetado, culto e com vários olhares para a etnologia, a etnografia e mesmo as ciências naturais. Do mesmo modo, a edição não está cabalmente revista, o que é manifesta injustiça para a memória do autor. Mas dá para perceber a riqueza vocabular, o amor entranhado a África, os superiores conhecimentos da fauna e da flora. O seu conteúdo propende para um maior número de histórias passadas em Moçambique e muito menos em Angola e na Guiné.

Onde reside a originalidade desta escrita? Se é facto que tem implícita a matriz de uma literatura colonial que fala do suicídio da nativa abandonada, da nativa sujeita a mil vilezas mas de muito nobre carácter, das superstições, da magia das florestas, onde João Augusto Silva é imbatível é na descrição envolvendo animais, actos de cobiça implacável entre colonos, peripécias em torno da valentia do caçador e da mestria do apisteiro.

Moçambique é o prato forte desta literatura de João Augusto Silva, mas a Guiné da sua infância e do adulto jovem merecem-lhe páginas belíssimas. Logo no conto Nhâ Bonita: “Eu adorava Nhâ Bonita e, naquele dia, como sempre, ao passar-lhe à porta da palhota de grossas paredes de adobe, caiadas de branco, dei-lhe os bons dias com todo o respeito. Ela respondeu-me na sua voz melodiosa, perguntando por meus pais e convidando-me a sentar um nadinha. Nhâ Bonita sabendo que eu ansiava por ver os bichos do seu pequeno jardim zoológico, ergueu da tripeça o seu imenso corpanzil e levou-me a esse mundo de maravilhas. Depois de visitar o jabiru, o periquito-rabo-de-junco, o papagaio-bijagó, a íbis sagrada, o pato-ferrão e tantas outras bichezas, mostrou-se um novo pensionista vindo da granja – uma gazelita cor de tijolo com o corpo sarapintado de listas e bolas brancas, que se aproximou, a passo cauteloso, com o narizito de ónix, fermente e húmido”. O menino vai à caça com Nho Gaetano, foi um dia de prodígios, o menino não queria que o seu pai soubesse daquela ida à caça, de onde tinham trazido uma pele de leopardo e assim termina a história: "Há pouco, ao remexer uma velha arca que me acompanhou nas infindáveis andanças pelas Áfricas, deparei com certa pele de leopardo já muito surrada – único troféu de caça que conservo da longa vida de sertanejo”.

A Guiné da infância de João Augusto Silva continua a estar presente no conto “O Javali Ferido”, agora vai-se falar de Ussene, um caçador Mandinga que trazia perdizes, galinhas do mato, patos-ferrões ou gazelas: “Serafim, o moleque, retirava de um barrilzito, nova provisão de pólvora grumosa com reflexos de chumbo, que o caçador embrulhava num trapo encardido, amarrando-lhe as pontas. Meu Pai dava-lhe então algumas moedas de prata que ele recebia com ambas as mãos, em sinal de respeito. Depois, com uma vénia de agradecimento, retirava-se para o quintal, sentando-se numa tripeça de pau-sangue à sombra do grande tamarindeiro, cujas florinhas amarelas atraiam uma multidão de irrequietos beija-flores”. E daí outra recordação da infância: “Ouvindo o bom do Ussene discorrer sobre os bichos da selva, o real e o fantástico casavam-se na minha imaginação infantil, emprestando-lhe um sortilégio inebriante. Eu sonhava acordado na felicidade de poder acompanhá-lo, de viver a seu lado aquela vida de aventura e mistério. Chegada a hora de abalar, Ussene, esguio e elegante como uma palmeira brava, erguia-se, ajeitava o turbante em redor das têmporas e despedia-se com um adeus amigo. Então, eu via-o seguir, digno, erecto na sua compostura de atleta, nado e criado ao sol, ao vento e à chuva”.

A prosa deste multifacetado artista é sensorial, contrai-se e expande-se de acordo com a necessidade de nos fazer vibrar com a hora do dia, a luminosidade, as cores da floresta, entre o real e o fantástico. Repare-se só nesta descrição: “O rio Farim que desce do longínquo Senegal como simples ribeiro ladeado de matagais, vai engrossando a pouco e pouco, até entrar no Atlântico, largo e majestoso, perto de Cacheu, vetusto burgo na decadência. As viagens de canoa, ao longo do seu curso médio e superior são deliciosas no tempo fresco. À maneira que se navega, rio acima, as margens, ricamente arborizadas, estreitam-se e, de certa altura em diante as águas cobrem-se com um dossel de verdura onde circulam macacos-fidalgos e aves de todas as cores. Nhô Manel Cambuca, mestiço cabo-verdiano, seguia à popa, agarrado ao leme, muito compenetrado do seu papel de piloto. Nos trechos em que o rio era largo, quando descobríamos numa das margens bandos de garças ou colónias de tecelões, cujos ninhos pendiam dos ramos como frutos, dirigíamos ao timoneiro um olhar suplicante e ele, com um sorriso cúmplice, mudava o rumo, de modo a passar rente ao arvoredo. Os remadores, por sua vez abrandavam o ritmo das remadas e nós, atirávamos às garças a meia dúzia de metros mas, para nosso desespero, as pedrinhas das fisgas não abalavam as aves que se limitavam a levantar voo, soltando o seu grito enervante de cana-rachada”.

A Guiné estará igualmente presente no conto “A aventura do amigo Soares” que assim começa: “A esse tempo vivia eu na Guiné, Babel das tribos mais nobres da África Negra. Falava correntemente dois dialectos – o crioulo e o mandinga – línguas francas, usadas desde o Senegal até à Serra Leoa. Passava então meses a fio sem ouvir uma palavra de português”. É em Bissau que faz amizade com um Soares, que tinha o dobro da sua idade, ele era magro e esgalgado e o Soares pesava uma boa centenas de quilos. Mas essas dissemelhanças não foram suficientes para arrefecer a amizade. Voltaram a encontrar-se, muitos anos depois em Lourenço Marques. O autor terá sido um dia profundamente desagradável com o Soares e ele aproveitou o reparo para lhe falar das atribulações da sua juventude em que conheceu os horrores da fadiga e da sede. Voltaram a despedir-se e nunca mais saíram. Um dia soube que o Soares morrera. Morrera um amigo que na hora certa lhe dera uma boa lição.

João Augusto Silva merecia ser mais conhecido: porque escreve muitíssimo bem e não esconde o seu amor por África, toda a sua prosa emana aquilo em que ele foi talentoso: as caçadas e o amor aos animais, a paixão pela fotografia e o lindo traço modernista do seu desenho e os sentimentos contidos que ele capta nas suas imagens fotográficas de que a capa deste livro é um mero exemplo de felicidade e orgulho.

Vitorino Nemésio escreve este artigo sobre João:

Retrato de Joao por Eduardo Malta:

Um dos mais conhecidos livros de João Augusto Silva foi: Gorongosa - Shooting Big Game with a Camera
Escreveu tambem uma série de contos:
Duas gravuras da autoria de João Augusto Silva:


Sessão de homenagem a João Augusto Silva teve lugar em 3 de Maio de 2013:
Baile de 1 de Dezembro de 1934 no Clube  Desportivo Internacional de Bissau

Acontece que nesse dia teve lugar um baile no Clube Desportivo Internacional de Bissau que contou com a presença do Governador da Guiné, de alguns convidados estrangeiros e de João Augusto Silva, que acompanhado da esposa, era na altura Chefe de Posto algures na Guiné.

O que sucedeu e que mereceu um enorme esforço administrativo pela parte das autoridades coloniais é muito revelador do estado de espírito que reinava na época e como tal é digno de ser lido:

Durante a estadia de João na Guiné, elle foi a certa altura (1931) chefe de posto  em Mansoa. 

Deixou um mapa da região:



























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